Por: Claudia Souza
O Brasil assiste, mais uma vez, à instrumentalização da dor
humana como moeda de troca no tabuleiro da política. A omissão dos ex-presidentes
da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco,
diante da pauta da anistia aos presos do 8 de janeiro expôs um jogo frio e
calculista, onde interesses eleitorais se sobrepõem à dignidade humana e aos
pilares do Estado Democrático de Direito.
Ambos foram eleitos com o compromisso de proteger a
Constituição, a Justiça e a liberdade de expressão. No entanto, encerraram seus
mandatos sem ao menos pautar a discussão da anistia para os presos, muitos dos quais ainda
aguardavam julgamento, muitos deles sem provas individualizadas de envolvimento
direto nos atos de vandalismo.
A anistia tornou-se, na prática, uma chantagem eleitoral. O tema é manipulado por diferentes espectros políticos: da direita, que a reivindica ostensivamente, à esquerda, que historicamente se beneficiou da anistia, mas hoje a evita ou silencia. O resultado é o mesmo: um Congresso paralisado, onde a justiça é procrastinada e usada como ferramenta de conveniência.
Enquanto isso, os familiares dos presos — muitos dos quais
jamais foram flagrados em atos de depredação — tornaram-se reféns emocionais,
figurando como peças sacrificáveis em estratégias de poder e reeleição.
A substituição de Lira e Pacheco ao final de seus mandatos, elegeram nas articulações Hugo
Motta e Davi Alcolumbre com suposto apoio que apenas deslocou o epicentro da manipulação: nenhuma
mudança concreta ocorreu, apenas novos atores assumiram o controle do impasse.
A inércia do Congresso diante do Supremo Tribunal Federal evidencia uma inversão preocupante de papéis institucionais. Parlamentares que deveriam legislar com independência rendem-se à pressão da Corte. A pauta da anistia parece paralisada não por convicções jurídicas, mas por medo — medo de represálias, de investigações ou de perda de capital político.
Cada pronunciamento em defesa dos "injustiçados"
do 8 de janeiro esconde um cálculo: manter o tema quente o bastante para render
votos, mas jamais resolvê-lo de forma definitiva. Essa ambiguidade estratégica
mantém a pauta em suspensão, útil como combustível de discursos inflamados, mas
descartável na prática.
A seletividade da justiça é evidente. Enquanto vários presos políticos aguardam julgamento sem provas concretas de participação ativa, criminosos do colarinho branco e figuras historicamente ligadas à violência armada foram beneficiados por perdões, habeas corpus e progressões de regime.
Casos como o de Sérgio Cabral, condenado a 425 anos de
prisão e libertado após seis anos, contrastam com o rigor aplicado aos réus do
8 de janeiro. A incoerência se aprofunda ao lembrarmos de ativistas armados da
ditadura que participaram de sequestros e ações violentas — como o caso do
embaixador americano Charles Elbrick em 1969 — e que, após a anistia, foram
indenizados e celebrados como heróis nacionais.
A própria Lei da Anistia (Lei nº 6.683/1979), sancionada por
um general — João Figueiredo — concedeu perdão a crimes cometidos tanto por
opositores do regime quanto por agentes do Estado. Muitos dos que hoje se opõem
à anistia foram, direta ou indiretamente, seus beneficiários.
Ex-políticos e artistas beneficiados:
Lula – Atuação sindical durante a ditadura contribuiu para o
ambiente que permitiu sua ascensão política.
José Dirceu – Exilado em Cuba, retornou com a anistia.
Fernando Gabeira – Participou do sequestro de Elbrick,
retornou como jornalista e deputado.
José Genoíno – Guerrilheiro do Araguaia, preso e depois
eleito deputado.
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Paulo Freire –
Censurados e/ou exilados, voltaram à cena nacional com a redemocratização.
Entre os anos 1990 e 2000, muitos anistiados passaram a
receber indenizações e pensões vitalícias. Segundo o Correio Braziliense, desde
2003, o governo federal já desembolsou mais de R$ 3 bilhões em reparações.
Enquanto ignora as petições populares por anistia e justiça, o Congresso prioriza votações inócuas: “Dia Nacional do Amor-próprio”, “Dia do Rodeio”, “Semana da Educação Física” e homenagens vazias que nada impactam saúde, segurança ou educação.
A cada dia, fica mais evidente a desconexão entre os
representantes eleitos e os interesses reais da população. A omissão
legislativa é não apenas institucional — é estratégica. O silêncio não é
omissão: é cálculo.
A cada dia de inação, a anistia vai se transformando em uma ferramenta de manipulação da opinião pública. Não se trata de defender depredações ou atos antidemocráticos, mas de assegurar que todo cidadão, culpado ou inocente, seja julgado com base em provas, individualização de conduta e respeito ao devido processo legal.
É legítimo debater os limites da anistia. É essencial punir
os responsáveis pelos danos. Mas é inaceitável que, num país onde estupradores,
corruptos e traficantes obtêm habeas corpus, presos políticos sem condenação
definitiva continuem encarcerados como exemplo, intimidação ou munição
eleitoral.
Se o Congresso teme o STF, que o diga. Se foge da pauta por medo, que admita. O que não é mais aceitável é fingir neutralidade enquanto lucra com o sofrimento humano.
A democracia não pode ser seletiva. O perdão não pode ser
moeda de chantagem. E a justiça não pode servir de espetáculo.
Enquanto presos forem usados como troféus ou trampolins eleitorais, não haverá justiça — apenas encenação. E num país onde a encenação vale mais que a lei, todos estamos em risco.
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